quarta-feira, agosto 13, 2003

Oito razões (de entre muitas outras) para que exista curso de Jornalismo


Neste momento, não são os extremos que se tocam; são as distâncias, em termos de tempo, que se anulam.
Chamado por vocês para ser seu paraninfo, aqui está um jornalista com mais de cinquenta anos de profissão, porém que se sente como se também pertencesse a essa mesma turma. Eis que felizmente conserva, sob os cabelos que embranqueceram, a juventude de espírito, tanto quanto o resistente idealismo com que deu os primeiros passos na carreira.
Compreendo-os, pois. E posso falar-lhes, muito embora no meu próprio estilo, na sua linguagem, ou seja, a linguagem que expressa seus receios e expectativas.

Sabem os que têm acompanhado o curso de minhas opiniões, neste ponto, que não se trata de uma atitude nova ou circunstancial.
Quando, substituindo a Ranulfo Oliveira, aceitei a tarefa de lecionar, gratuitamente, no primeiro Curso de Jornalismo criado nesta Universidade, em 1949, e quando, anos mais tarde, tendo desaparecido aquele curso, que morreu por inanição, dispus-me a organizar, a convite do reitor Albérico Fraga, e também sem qualquer retribuição pecuniária, o segundo e atual curso, nascido e, 1962- não o fiz senão por está plenamente convencido da necessidade, ou, por ser mais enfático, da imprescindibilidade de fornecer-se ao candidato ao jornalismo, preparo sistemático capaz de aparelhá-lo para o seguro ingresso na profissão, e, no exercício desta, de conhecer suas diferentes áreas.


Razões da existência do curso

Resumirei em alguns itens, que me parecem irrecusáveis, a conveniência dos cursos de jornalismo. Primeiro: a opção vocacional.
Explico:
O indivíduo que escolhe uma profissão está exercendo com isso um ato de vontade, a ser mantido, na generalidade dos casos, para o resto da vida.
Ao se definir, entre as diversas, por uma determinada carreira, esta decisão é tomada pela pessoa porque identifica o tipo de trabalho com suas inclinações pessoais, ou com os predicados que está certa de possuir.
Para o jovem que pretende assumir uma ocupação definida, a eleição de um determinado setor de atividade envolve, em si mesma, a disposição de preparar-se, desde o começo, para exercê-la. E assim ele parte para ser, através do estudo e da prática, um verdadeiro profissional.
No caso do jornalismo, quando, afinal, esteja habilitado ao seu desempenho, poderá sentir o extremo conforto da vocação atendida, sendo que, ao mesmo tempo, esse campo da comunicação terá ganhado alguém que a ele comparece com o genuíno entusiasmo.
Bem diversa é a condição daquele que ingressa de improviso num tipo de trabalho alheio ao seu plano de vida.
Ao tempo da minha iniciação, a porta do jornalismo estava aberta a quem quer que desejasse praticá-lo, ou que para seu exercício fosse convidado. Bastava redigir sofrível ou razoavelmente. Estando ao alcance de qualquer um, o status de jornalista significa, para alguns, um degrau para ascensão na vida, pelo prestígio que conferia, enquanto que para outros o trabalho na imprensa representava um "bico", ou seja, a remuneração de uma atividade suplementar, a somar-se, como pequena parcela, aos modestos proventos oriundos de outras profissões.
A obtenção do emprego publico era, necessariamente, o objetivo normal do jornalista , e sua compensação. Sem remuneração bastante para manutenção da família, e sem Ter sido aquela espécie de trabalho seu propósito original, não podia ser, salvo exceções, um profissional dedicado integralmente ao seu mister; que a ele se desse de corpo e alma.
Com isso não quero dizer que no passado a imprensa haja deixado de atrair pessoas dotadas de real vocação para a comunicação escrita, ou que muitos jornalistas não se distinguiram pela devoção ao trabalho, e pelo ânimo com que executavam suas tarefas. Foram assim não poucos dos meus contemporâneos , em épocas já distantes. A eles devo esta palavra de justiça. Além, disso, a culpa por aquele estado de coisas não era, propriamente, dos jornais; era do sistema, dos costumes então vigentes, anteriores à profissionalização formal do jornalista.

O curso seleciona

A Segunda razão de ser dos cursos de Jornalismo deriva da anterior e é de interesse imediato dos órgão de imprensa.
Trata-se da seleção que se opera no decorrer do curso, no sentido de identificar o melhor material humano a ser recrutado pelos jornais.
Efetivamente, a existência dos cursos dispensa os órgãos de imprensa do difícil e em alguns casos desapontador encargo de procurar elementos supostamente aproveitáveis para o preenchimento da claros no quadro redacional.
Hoje eles podem achar facilmente esses elementos entre as turmas graduadas periodicamente pelo curso. As referências de professores ou de recém-formados ajudam-nos a encontrar os jovens mais futurosos de cada turma que vai deixando a escola.

O amplo preparo profissional

Terceira razão em favor do Curso de jornalismo: o preparo profissional.
No curso de jornalismo, o futuro profissional deve adquirir, de forma sistemática, conhecimentos setoriais pertinentes aos diversos serviços que se executam num jornal, o que lhe permite, ao termo do próprio acadêmico, a compreensão geral da estrutura e da dinâmica do veículo informativo.
É missão do curso familiarizar o aluno com cada qual dos serviços, até mesmo aqueles que, amanhã, venham a estar fora da sua competência, como os de natureza técnica ou administrativa; porém, mais que familiarizá-lo com o trabalho de redação, dar-lhe aptidão para exercer qualquer das funções próprias do jornalista, ainda quando não sejam as exigem esforço intelectual, por se tratar de tarefas auxiliares.
Dir-se-á que nossos cursos de Jornalismo são deficientes. Que os currículos adotados pecam ou pela falta de disciplinas necessárias ou pelo enxerto de outras que pouco têm a ver. Que não possuem instalações e equipamentos apropriados. Que o ensino é sobretudo teórico e desestimulante. Que é mínima a parte prática do aprendizado.
Tudo isso é total ou parcialmente verdadeiro. Porém, ainda que reconhecidamente deficientes, em todo o país, de qualquer modo proporcionam aos seus alunos uma soma de informações e experiências incomparavelmente mais ampla que a adquirida pelos jornalistas autodidatas, mesmo depois de longo tempo de profissão.
A distinção entre os vários gêneros de matéria redacional e as peculiaridades de cada um deles. A maneira objetiva e diversificada de preparar a notícia. As modalidades de entrevista. De como redigir o comentário do fato extraído do cotidiano, ou produzir o artigo editorial fundamentado e opinativo. A busca da síntese e do impacto na arte da titulação. A escolha da boa ilustração gráfica. A editoração; como funciona. Diagramação; não só o simples cálculo da extensão do texto, mas a forma sugestiva de aramar a página. Arquivologia; vale dizer, a armazenagem de subsídios para o aprofundamento da notícia ou o respaldo da interpretação do fato.
Todas essas coisas, afora muitas outras, o candidato ao Jornalismo há de aprender na escola incumbida de prepará-lo.
Antigamente, o jornalista que entrava a trabalhar numa redação sem formação prévia, tinha necessariamente de ficar emparedado nas fronteiras até onde chegasse a prática do ofício. E isso ainda acontece com vários dos veteranos na profissão. Presentes na redação a 20 ou 30 anos, desempenham bem, ou sempre melhor, as tarefas originais, porém ignoram quase tudo quanto esteja além do seu campo de visão, já que sua única escola foi e continua sendo a rotina diária.
Se os cursos de jornalismo são falhos , o certo não é condená-los, ou postular sua extinção; sim, exigir que sejam colocados à altura de sua importante função, pois hoje deles, exclusivamente deles, depende o suprimento de mão-de-obra à imprensa. E esta é uma exigência que se agrava em razão do crescente emprego dos meios eletrônicos no trabalho jornalístico, demandando profissionais que, além de possuírem autonomia de texto, se apresentem treinados no uso da aparelhagem criada pela informática.
Trata-se de um desafio para cujo enfrentamento a imprensa tem de pressionar as universidades.

Onde se aprende ética

Quarta razão para que exista o Curso de jornalismo: a conscientização da ética da imprensa. E eis por quê:
A parte mais alta da comunicação é a sua ética. Comunicação desamparada de princípios morais passa a ser algo como uma agressão aos sentimentos da comunidade, na medida em que se torna um agente de corrução de costumes, e de inversão de valores.
O paladar de uma comunicação dessa natureza não distingue, por exemplo, entre o crime e a ação útil, senão para alardear aquele, em busca da ressonância no seio da massa. A comunicação corretamente orientada, pelo contrário, se não subtrai o registro do crime, do fato negativo, já que seu dever é informar, todavia lhe retira o destaque gritante, privilegiando, em termos de espaço e de tempo, as notícias de real interesse público. E ela, a comunicação honesta, assim procede porque procura agir dentro da ética. Análogo será no seu comportamento perante inumeráveis situações outras. Porque a ética não alcança apenas o tratamento do fato que tem de ser levado ao conhecimento do público; envolve, também, as relações entre os veículos que trabalham na mesma área, bem como entre os comunicadores, uns para com os outros.
Para todas essas finalidades é que as entidades que reúnem os homens de comunicação elaboram códigos, em que são capituladas as regras de conduta recomendadas a cada classe. Nos cursos de Comunicação, os de Jornalismo inclusive, o estudo de tais códigos, e de sua razão de ser, ao lado de exemplos práticos, constituem disciplina obrigatória. O que significa que, ao terminar esse estudo, o futuro jornalista passa a saber como se comportar para estar à altura da função social da comunicação.
O jornalista de outros tempos tinha também a sua ética, é certo. Mas. Era a sua ética. Instituía, ele próprio os seus parâmetros morais, conforme a sensibilidade que possuísse para diferenciar o que fosse bom ou mau no fato a comunicar.
Aqueles mais interessados no sentido da profissão conheciam, ao menos pelo alto, os códigos organizados pela sociedade de imprensa. Havia, porém, os que não tinham qualquer noção de ética, nem tampouco pouco se preocupavam com sua aplicação. A falta de preparo para profissão levava-os a desprezar essa e muitas outras coisas.

Conhecer a lei

Quinta razão: o estudo do direito de imprensa.
Os limites da liberdade de expressão, isto é, o respeito ao direito que cabe a qualquer pessoa de Ter preservado o seu conceito contra a difamação, a injúria e a calúnia. A definição de cada um desses crimes. O respeito à privacidade do indivíduo que se torna um assunto potencial de notícia. O exame imediato da legislação de imprensa. A extensão comparativa desse exame à legislação estrangeira similar. O direito de acesso às fontes de informação e os casos em que a proteção delas justifica o sigilo. Pressupostos e garantias da liberdade de imprensa. A significação dessa forma de liberdade no contexto do sistema democrático.
E aí está, no rol de muitos outros, alguns assuntos constantes do direito de imprensa, que, pela peculiaridade de suas normas e leis, da sua doutrina e jurisprudência, deve constituir, hoje, um ramo independente no painel dos compartimentos do direito público.
O lugar próprio do ensino do direito de imprensa é o curso de jornalismo. E é de lastimar que esse ensino não existisse no passado, porquanto viria esclarecer sobre muitas questões os jornalistas que não praticavam a profissão, ou que nela continuam, estes persistindo na ignorância dos alicerces e fronteiras legais do seu campo de trabalho.

Necessidade da formação universitária

É a sexta razão. Há de interessar à sociedade que o profissional da imprensa, como da comunicação em geral, possua um embasamento cultural capaz de permitir-lhe a transmissão correta da notícia ou da opinião. Não lhe basta escrever certo e fluentemente. Precisa dispor de conhecimento variado, como são os oferecidos pelo curso de humanidades e, na etapa seguinte, pelo curso superior. Afora as disciplinas específicas do curso de jornalismo, vale dizer aquelas que dizem respeito diretamente à sua futura ocupação, carece de saber ao menos noções gerais de matérias que irão iluminar o seu trabalho, tais como sociologia, ciência política, economia, direito público, geografia, história e outras do grupo das disciplinas complementares. Estará preparado, assim, para situar os acontecimentos no espaço, no tempo ou no contexto social, a salvo de heresias como as que ainda cometem certos comunicadores a que visivelmente falta prepara para formular a sua mensagem: heresias que o público não deixa passar e que , portanto, desconceituam os próprios veículos.
A coletividade costuma ser severa na cobrança da função educativa da comunicação.
E é realmente necessário que o seja.

Uma profissionalização efetiva

Sétima razão: a profissionalização.
A verdadeira profissionalização do jornalismo pode ser datada da época da criação dos cursos a nível universitário, a que forçosamente se seguiu a legislação protetora do trabalho.
Não que na fase anterior não existissem profissionais no ramo., ou seja, pessoas que estavam na profissão com ânimo permanente. Era, porém, um pequeno grupo sempre inferior, em número, ao daqueles que apenas transitavam pelas redações, neste maior contigente figurando jovens estudantes para os quais a minguada remuneração do trabalho servia para custear os estudos, no término dos quais se encaminhavam para as carreiras escolhidas. Outros, depois da óbvia prestação de favores, conseguiam um bom emprego público e também largavam o jornal.
Presentemente, com o constante ingresso nas redações de jornalistas graduados, já não se observa isso. Chegam para ficar. E se empenham nas tarefas, buscando melhorar sempre o desempenho, desde quando aquele é o destino definitivo, de suas expectativas, o caminho de sua realização pessoal.

A reserva do mercado de trabalho

Oitava e última razão: a estabilidade econômica da categoria.
Uma legislação composta de vários textos, o primeiro dos quais datando de 1938, regula e ampara o trabalho na imprensa. Essa legislação se tornou mais rigorosa a partir de 1969, quando, sem prejuízo para os jornalistas existentes, reservou o mercado de trabalho, desde então, aos egressos de cursos oficias ou oficializados de jornalismo. Com tal providência, o poder público, mantenedor da quase totalidade dos cursos universitários de jornalismo, visou, de um lado, a assegurar trabalho aos graduados nesses cursos, , justificando, assim, o emprego dos recursos do erário; e de outro lado, procurou garantir a estabilidade econômica da categoria através da percepção de melhores salários, posto que o privilégio concedido aos graduados obrigatoriamente implicaria mais reduzida oferta de mão-de-obra.
Vê-se, portanto, que os cursos de jornalismo estão intimamente vinculados a situação salarial dos profissionais da imprensa. Extingui-los, ou abolir a legislação protetora eqüivaleria a desorganizar completamente esse mercado de trabalho, tanto quanto abrir a porta para a concorrência de quantos, com ou sem qualificação universitária, quisessem ingressar na seara ora privativa, reproduzindo-se a situação anterior, de livre exercício da profissão. Seria, já se vê, um retrocesso inaceitável.

Recapitulando:

Para melhor fixação na memória dos que contestam, volto a citar as razões que favorecem, de modo insofismável, segundo acredito, o funcionamento dos cursos de jornalismo. Entre outras, que poderiam ser aduzidas, são elas, como já disse: a opção vocacional; a seleção dos mais aptos ao exercício da profissão; o preparo para o ofício; o conhecimento da ética do jornalismo; o estudo da legislação de imprensa; a formação universitária do comunicador; a profissionalização definitiva do jornalista; e, afinal, a estabilidade econômica da categoria.

Ao salientar, de forma objetiva, a necessidade deste curso, creio Ter contribuído para que cada um de vocês se capacite, em definitivo, de que fez a escolha certa ao optar pelo jornalismo, e passe, cada um, a encarar o futuro com maios confiança.
Penso que todo profissional que executa o seu trabalho com amor, vendo na produção que sai de suas mãos o fruto de sua realização pessoal, possui a convicção de que não há ofício mais estimulante do que o seu. Há de julgar assim o carpinteiro, o artista plástico, o médico, o arquiteto. É uma opinião individual. Pois para mim, da mesma maneira que, por certo, para vocês, novos jornalistas, também não existe trabalho mais empolgante que o da imprensa. Em cuja prática se está acompanhando, em toda sua vibrante palpitação, o fluxo da vida social, nas diferentes nuances em que ela se desdobra, ora em explosões de violência, ora em bonançosos períodos de paz construtiva, fornecendo para cada edição de jornal a tragédia que mata e a descoberta científica que salva, o fato representativo do progresso e o quadro angustioso da favela onde prevalecem condições subhumanas de existência- tudo isso tendo o jornal como seu estuário, e o jornalista como aquele que recolhe, transforma em palavra, e transmite.
Ser fiel à verdade é, pois, o primeiro dever do jornalista. E o que fornece a verdade é o fato. Impõe-se, por conseguinte, que seja comunicado de forma objetiva e despojada de impressão pessoal. O jornal tudo pode dizer, até mesmo no registro de ocorrências as mais escabrosas; a questão é como dizer. O erro estará em silenciar, escamoteando do público o direito à informação, pela qual, por sinal, ele paga, ao comprar o exemplar.
Com alguma freqüência, o jornalista se vê diante de seduções de vária ordem.
Propõe-se-lhe esconder fatos cuja divulgação possa prejudicar interesses, ou, pelo contrário, estampar notícias a bem de conveniências nem sempre legítimas. Para uma ou para outra dessas transigências a compensação acenada costuma ser tentadora. Porém, não pode haver retribuição mais reconfortante do que a de respirar o ar puro da honestidade profissional.
Essa correção de comportamento é que pode continuar alimentando no indivíduo, ao longo do tempo, os belos ideais da juventude. E é justamente isso que, sobre todas as coisas, desejo a vocês, meus queridos afilhados de hoje.
Deposito toda a minha fé em que, quando no exercício da profissão, e, mais tarde, quando forem envelhecendo, pelo avanço inexorável do tempo, tenham sempre conservados os sentimentos que os envolvam neste instante.,
Se assim acontecer, terão justificada a esperança de quantos, como eu, acreditam no futuro de um jornalismo cada vez melhor, servido por uma geração de profissionais preparados especialmente para sua indispensável missão.

Artigo de Jorge Calmon, jornalista brasileiro, eleito paraninfo pelos bacharéis em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal da Bahia, é Professor emérito da mesma Universidade e ex-presidente da Associação Bahiana de Imprensa. Recebeu a medalha Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo sentido cultural da sua actuação no jornalismo; recebeu ainda a Comenda do Mérito das Comunicações do Governo federal, no grau de Grande Oficial, e a Medalha do Mérito Jornalístico, da Associação Bahiana de Imprensa, de que é também Sócio Benemérito.

Dica de Lucienne Setta, Mestre em Psicologia Social e Jornalista/Relações Públicas no Brasil.

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